Green Copybook - Sobre mim


Nasci em um vilarejo no Estado de São Paulo, Brasil, mas por questão de segurança, prefiro não informar o ano de meu nascimento e seu local exato. De qualquer forma, foi por volta dos anos 70 e vivi neste vilarejo por cerca de 15 anos. Meu pai era nascido no local e meu avô paterno havia ajudado a desbravar a região nas primeiras décadas do século, quando houve a construção de uma ferrovia, cujas muitas estações acabaram dando origem a vilarejos como este em que nasci.

Em uma época de poucos recursos, mas de mais segurança quando comparada com os dias de hoje, era comum que as crianças brincassem soltas pelas ruas, pelos campos, sítios e rios das redondezas. Eu, meus irmãos e meus amigos aventurávamos por todo canto, e explorávamos lugares muito interessantes para crianças e adolescentes. Um desses lugares, mas não o único, era um morro próximo, coberto de canaviais e laranjais, cuja estrada de acesso bifurcava no topo e se dividia em três ou quatro rumos. Entre uma dessas bifurcações, um bambuzal se destacava pela altura e comprimento quando comparado às plantações mais baixas ao redor. Esse bambuzal era conhecido como "A trincheira".

Eu já tinha ouvido falar desse bambuzal antes de tê-lo conhecido pessoalmente em minhas andanças pelo morro. Eu devia ter sete ou oito anos e ouvi os comentários sobre o bambuzal por meio de um grupo de adultos na porta de um armazém na rua comercial do vilarejo. Neste dia, falava-se sobre o fato de um dos donos das terras ao lado do bambuzal ter encontrado tempos atrás objetos que pertenceram a soldados da época da Revolução Constitucionalista de 1932, que envolveu a região de alguma maneira. O bambuzal fora plantado na vala da trincheira, crescera ao longo das décadas e ocultara os restos dos objetos deixados pelos soldados no fim dos conflitos em 1932, e o sitiante que morava próximo do bambuzal, explorando-o na sua vala, juntamente com seus filhos, acabou encontrando botas, capacetes, restos de outros objetos, como talheres e marmitas, mas também projéteis, ou cápsulas vazias talvez.

Aquela história me fascinou. Guerras nos morros de minha terra natal? Como aquilo fora possível? Seria verdade que houvera ou ainda haveria objetos deixados por soldados numa antiga trincheira a pouco mais de dois ou três quilômetros de nossa casa tranquila e segura? Não sabia a resposta, mas passei a ter um grande interesse nos relatos das pessoas mais velhas, principalmente quando falavam da época da Revolução.

Meu avô paterno já morrera nesta época, mas seu irmão mais novo ainda vivia, morando em uma casinha simples em um sítio nas redondezas. Vou chamá-lo de Tio Z., embora não fosse um tio, mas um tio-avô. Nesta época ele deveria ter já seus 70 anos.

Tio Z. aparecia vez ou outra no vilarejo. Em uma dessas suas passagens, também na porta desse armazém, o mesmo armazém da história da trincheira, acabei perguntando a ele se era verdade que havia uma trincheira no meio do bambuzal no alto do morro. E ele respondeu que sim, que ali fora cavada uma trincheira por soldados na época da Revolução, e que não chegou a haver combates no local, porque a guerra acabou com as tropas mineiras invasoras parando a poucos quilômetros antes vindas de um outro vilarejo vizinho, mas que houve combates com mortes neste outro vilarejo e nas redondezas, assim como durante o período da guerra em si chegara a ver algumas vezes a passagem de aviões militares vindos de uma cidade próxima, que tinha um campo de aviação, como eram chamadas as pistas de pouso improvisadas na época.

Meu tio não contou muito mais que isso, mas a partir de então a imagem da guerra que tinha na cabeça ganhou um novo contorno. Eu imaginava aviões passando por cima do vilarejo vindos do sentido da cidade com o campo de aviação e depois sobrevoando o morro sobre a trincheira e depois fazendo uma grande volta em retorno à sua base, observando tudo, sem saber ao certo se eram aviões amigos ou inimigos, e sem saber ao certo se tinham armas ou eram somente aviões de observação, e ainda imaginando que o vilarejo fora poupado de combates por uma questão de dias, ou talvez horas. Aquela versão da história contada rapidamente pelo meu tio deixou-me ainda mais curioso e fascinado.

Um dia eu e um grupo de moleques acabamos subindo o morro, por trás do qual o Sol se punha todas as tardes, e em cuja direção víamos a Lua ao escurecer enorme e gorda como um gigantesco balão, que levava gerações de meninos a correr morro acima com varas de bambu na sanha de "furar o Sol", ou "furar a Lua", sem nenhum sucesso, e a retornar frustrados, cansados e com suas varas inúteis nas mãos. Neste dia fomos ao topo do morro, que não é de fato alto, mas parecia ser para as crianças criadas no vilarejo e sem referência de outras alturas e outras distâncias. Era uma tarde quente e poeirenta, e chupamos canas no caminho pedregoso e acabamos avistando o bambuzal. Fomos até ele e de fato vi que a plantação de bambus se estendia em uma linha reta por cerca de cem metros, e as raízes ficavam em uma vala de cerca de um metro ou um pouco mais de profundidade, e parecia mesmo ter sido escavada por alguém, embora eu achasse que toda a história pudesse ser mentira e a vala pudesse ter sido escavada pela lâmina de algum trator das redondezas. Não imaginei naquele momento de ceticismo que os bambus eram velhos e que para terem vivido até terem a altura que tinham precisariam ter sido plantados há muitas décadas, em uma época que certamente não havia ainda os tratores com lâminas que eu conhecia e que eram capazes de abrir valas daquele tipo facilmente. O fundo da vala, para minha decepção, estava todo coberto por folhas mortas de bambu. Era uma cobertura grossa, fofa e úmida, e não era fácil chegar ao solo firme. Sequer pensei em procurar o que quer que fosse que pudesse estar escondido debaixo daquelas folhas. Imaginara, em minha inocência, que encontraria bambus plantados em um chão limpo, e que de distância em distância naquela vala eu encontraria, meio enterrados, capacetes e botas encardidas e, vez por outra, punhados de balas de fuzis e metralhadoras esparramados ao acaso. Mas aparentemente somente eu tinha interesse naquela vala, e a molecada parecia saber da história do bambuzal, mas ninguém ali se interessou em procurar nada e em poucos minutos deixávamos o local, rumo a outros locais mais interessantes para o restante do grupo. Fiquei com a sensação de frescor e umidade que emanava daquela vala escura, que suavizou por alguns minutos o calor daquela tarde. Pensei muito rapidamente, quase inconscientemente, que ali talvez, apenas talvez, também poderia esconder ossos de soldados mortos, mas não achei muito provável, porque meu tio dissera que ali não houvera combates, mas ainda assim não tomei a ideia como impossível, e essa ideia me fez sentir um certo receio do local. Afinal, eu era um menino católico e como tal já tinha visitado um cemitério antes, mas a relação entre a trincheira e os cemitérios não ficou somente naquele fugidio momento de suspeita, naquela tarde de verão no alto do morro.

Apesar de não ter havido combates no vilarejo, houve mortes no vilarejo vizinho e nos campos ao redor entre os dois vilarejos. Na época da Revolução não havia estradas asfaltadas ligando as duas cidadezinhas. Havia apenas um linha de trem acompanhando um ribeirão que ligava as duas regiões e uma estrada de terra que seguia por cima do morro que tinha o ribeirão como vale. Entre os dois vilarejos, na estrada de terra, havia um cemitério. Este cemitério servia aos dois vilarejos. Era um cemitério que já estava desativado na época em que o conheci, mas que fora ativo desde a criação dos dois vilarejos, por volta de 1914, quando da construção da ferrovia. A região era antes uma área nativa que foi desbravada pelo traçado da ferrovia e que tinha nos pontos de parada para abastecimento das locomotivas as origens dos vilarejos da região. Assim, em 1932 aquele cemitério era ativo e funcional. Certamente foi criado e começou a ser utilizado ainda por volta do ano de 1914. Funcionou até por volta de 1955, quando então o vilarejo vizinho, que cresceu e se emancipou do município do qual fazia parte, passou a ter seu próprio cemitério em local mais acessível, levando à desativação do cemitério velho no morro.

Esse cemitério velho fica na beira de uma estrada de terra. A estradinha fica no morro e por isso, tem na direção do vale o lado por onde as águas das chuvas correm, e do outro lado, na direção do topo do morro, há um barranco de uns dois metros de altura, que passa, portanto, ao lado, e ao mesmo tempo, abaixo do cemitério velho. Na época em que eu vivi na região, o cemitério se resumia a um cercado com cerca de 20 túmulos muito arruinados pelo tempo e pelo vandalismo. Além do cercado havia somente pasto e os animais a pastar. Mas as pessoas mais velhas do vilarejo diziam que ele fora originalmente bem maior e se estendia por uma grande área na direção do pasto. O dono da terra vizinha ao cemitério certamente ignorou a maioria dos túmulos e plantou pasto por cima deles, deixando apenas uma pequena área como lembrança, por respeito ou por obrigação, devido a algum limite imposto pela Prefeitura ao desativar o cemitério.

A estrada, sempre sujeira a erosão pelas chuvas, sempre recebia algum tratamento de manutenção por meio de máquinas de terraplanagem, de forma que a cada ano a estrada adentrava um pouco na área do cemitério. Assim, não era incomum que se visse pedaços de tijolos, concreto, madeira, tecidos e mesmo ossos humanos no barranco, que tinha ainda uma pequena escada em cada ponta do terreno, de modo a permitir que as pessoas interessadas pudessem subir o barranco e visitar os túmulos. Afinal, ali havia restos mortais de pessoas ainda lembradas por moradores mais antigos, cujos parentes ali foram enterrados. Era o caso de meu bisavô paterno, um português que migrou para o Brasil ainda no final do Século XIX e ajudou a construir a ferrovia, depois passou a morar no vilarejo e por fim morreu, sendo enterrado no cemitério no alto do morro. Seus restos mortais, no entanto, foram transferidos para o novo cemitério no novo município, que ao ser criado acabou também incluindo o vilarejo onde nasci como parte de seu território.

Mas nem todos os restos mortais foram transferidos para o novo cemitério. Dentre os poucos túmulos que restaram, alguns ainda recebiam flores nos dias de Finados. Outros eram vandalizados vez por outra e ainda o local era usado para a realização de cerimônias de Umbanda, Candomblé e Macumba. Era comum ver restos de velas coloridas, flores e restos de refeições típicas dessas manifestações religiosas. Eu fui algumas vezes a este cemitério. Duas ou três vezes fui com meus pais, de carro, quando então meu pai contava sobre os restos de meu bisavô, e uma ou duas vezes eu fui a pé, bisbilhotando pelas redondezas. E mesmo depois de adulto, depois que já havia me mudado da região fazia muito tempo, ainda passei por lá uma ou duas vezes, com meus irmãos, agora adultos, em passeios de carro para relembrarmos nossa infância na região. Meus irmãos ainda moram por lá, na cidade maior. De alguma forma as coisas melhoraram para o pequeno cemitério. Um dos prefeitos da cidade, provavelmente na década de 1990, decidiu tomar medidas de proteção ao local e realizou um esforço de limpeza e manutenção do cemitério, incluindo uma placa em homenagem aos cidadãos ali enterrados, de forma que agora, ao menos, há algum reconhecimento de seu valor histórico para as novas gerações. Mas poucos sabem que entre os poucos túmulos que restaram, há pelo menos dois, ou três, que são de soldados que tombaram mortos durante a Revolução de 1932. Lembro-me de ter visto um túmulo de um capitão, cujo nome não gravei, e de outro militar, sem memória de nome e patente de minha parte, mas que foram efetivamente enterrados nos meses de batalha de 1932, claramente mortos durante a Revolução. No outro vilarejo, certamente houve combates e mais mortes, além de fuga da população e ocupação por forças de ambos os lados do conflito, mas o que importa agora é que pouquíssimos lugares em nosso país permitem que se tenha uma experiência dessa natureza: ver um túmulo de um soldado tombado em batalha, mais uma das inúmeras batalhas do Século XX, mais alguns dos milhões de mortos esquecidos e ignorados. De forma que concluo ser um ilusão pensarmos que estivemos, estamos e estaremos imunes a esse problema, por mais que pensemos o contrário. Claro, eram apenas túmulos e histórias e nada mais. Vivíamos em paz, longe da realidade da época vivida por libaneses, iranianos, salvadorenhos, vietnamitas, africanos em geral, que padeciam em guerras reais e muitíssimo mais violentas que a Revolução de 1932, em termos relativos. Éramos um povo simples, mas de forma geral, pacífico, apesar das histórias dos mais velhos e dos túmulos nos cemitérios abandonados.

Mas, apesar da simplicidade daquela época, não vivíamos no vazio do mundo, sem informações ou isolados. Éramos parte de um mundo que se desenrolava de maneira intensa e assustadora, embora que longe do nosso vilarejo pacato. Esse mundo maior e mais agitado nos era acessível pela televisão, que começava a entrar nas residências dos moradores locais. E com elas, as televisões, vinham as notícias do mundo. As guerras, fossem elas em Beirute, no Afeganistão, em El Salvador, no Irã, ou outro local qualquer. Recordo-me que já não havia notícias de guerra no Vietnã. Essa guerra já havia terminado quando meu pai comprou nossa primeira televisão e eu sequer ouvira falar dela, mas nos noticiários era certo ouvir falar em Komeini, o Aiatolá, no Irã, em atentados e confrontos em Beirute, no Líbano, em conflitos diversos na América Central, em Sendero Luminoso e a invasão do Afeganistão. Era então o fim da década de 70. Eu via as notícias internacionais e o mundo parecia ser um local complexo e confuso, conturbado e perigoso. E de fato era. As notícias eram comentadas mais aprofundadamente por Paulo Francis, com sua fala lenta e agonizante, e me recordo claramente da maneira como ele pronunciava o nome de Ronald Reagan e Margaret Tatcher, e embora seus comentários não fossem completamente compreensíveis para mim, era certo que o mundo tinha um problema maior que as guerras em andamento, porque ele se preocupava mais com as relações de poder entre esses dois personagens políticos do que com qualquer outro assunto. Citava o Papa, ou a sucessão de papas que se deu naquela época, e citava Lech Walesa, mas citava também líderes soviéticos, e a sucessão deles também, que se deu naquela época, mas era claro que havia um problema maior que as guerras declaradas. Era a Guerra Fria, com seus mísseis nucleares e ameaças constantes. Assim, não éramos de todo alheios aos acontecimentos do mundo, e não era incomum ver na televisão cenas de tanques de guerra destruídos, ou em movimento, ou soldados correndo em ruas de cidades destruídas, ou filas de corpos encobertos por lençóis em meio a matas fechadas em algum lugar qualquer do violento mundo daquela época.

Ainda assim era tudo muito remoto, embora assustador. Era remoto a ponto de não haver relação com a guerra real, a da Revolução de 1932. Eram dois mundos distintos, dois tipos de guerras distintos. A guerra das trincheiras e a guerra das bombas nucleares. Como ocorriam? Por que ocorriam? Como se desenrolavam? Como acabavam? Não sabia, mas as guerras rondavam a minha jovem vida naquele vilarejo remoto e portanto eu não estava livre de suas notícias, fossem elas pela televisão, fossem pelas histórias contadas pelas pessoas locais, embora que fossem certamente tipos de guerras diferentes.

Mas o vilarejo onde eu morava ainda tinha algo de interessante para quem já tinha curiosidade por guerras. Ele ficava relativamente perto, ao alcance dos aviões de treinamento de pilotos da Força Aérea Brasileira, localizados em Pirassununga, no interior do Estado de São Paulo. Claro que o vilarejo também era sobrevoado regularmente, diariamente, por grandes aviões comerciais a jato que se aproximavam para pouso em Campinas ou São Paulo, assim como por aviões menores, civis também, em geral com motores com hélices, de transporte de executivos em geral, assim como havia os pequenos aviões civis de passeio e turismo, do tipo usado nos aeroclubes das cidades da região. Assim, aviões não eram difíceis de serem vistos. E eu gostava deles.

Naquela época, quase ao final do regime militar no Brasil, havia ainda a presença anual de tanques de guerra vindos também de Pirassununga para os nossos desfiles de Sete de Setembro. Não havia desfiles no vilarejo, mas como éramos estudantes da pequena escola pública local, íamos em todo Sete de Setembro para a cidade principal, sede do município, participar do desfile junto com os alunos de outras escolas públicas. Tocávamos fanfarra e marchávamos ao som dos bumbos. E vez ou outra um pesado tanque de guerra pintado de um verde misterioso e fosco era trazido de Pirassununga por um caminhão e saía marcando o asfalto das ruas da cidade com a dureza de suas esteiras. Aqueles tanques eram fascinantes e de alguma forma me parecia que o Exército era algo mais poderoso e interessante do que a Força Aérea.

É preciso uma observação aqui: como eu disse, nós vivíamos anos de um governo militar, uma ditadura para alguns, um governo legítimo para outros, não importa agora. O que entendo que era certo é a influência que as forças armadas exercia nas mentes de toda uma sociedade, ou ao menos uma grande parte da sociedade. Certamente o sistema educacional público era desenhado para passar uma mensagem positiva das forças armadas e do governo da época de forma a tentar influenciar de alguma forma as mentes dos alunos. Para isso usava-se de vários recursos, tais como os desfiles, mas também havia uma tentativa de se insuflar um sentimento de patriotismo e respeito aos símbolos e datas nacionais patrióticos. Hinos, desfiles, concursos, hasteamento regular de bandeiras, poemas e declamações, fanfarras e fardas eram coisas do dia-a-dia da época e era muito comum que as crianças em geral, mas os meninos em particular, pensassem em se tornar adultos membros das forças armadas, ou do governo, ou mesmo astronautas. Onde eu vivia não era diferente.

Página atualizada em 02/04/2024.