Por onde começar?

Tudo tem um começo. Ter um começo, entretanto, não significa que esse começo seja simples ou conhecido. Na verdade, as coisas se dão exatamente de maneira contrária. Todos os começos são misteriosos e complexos, mesmo quando aparentam o contrário. Basta que prestemos um pouco de atenção a essa suposta simplicidade, e ela se desvanecerá como fumaça. Cadeias causais infinitas, múltiplas interações entre numerosíssimas causas, a maioria desconhecida, faz com que a origem das coisas seja sempre nebulosa, escorregadia, vaga. Quanto mais fundo cavamos no passado, menos sabemos acerca de tudo. O tempo apaga os rastros deixados pela seqüência de eventos que geram as coisas, e o que sobra são ruínas que contam pouco, falam pouco, esclarecem pouco. Daí a importância da memória.

Precisamos registrar os fatos. Mas não só os fatos. Precisamos registrar o complexo mundo interior, que chamamos mente, porque é na mente que as coisas realmente acontecem. Mas não é tarefa fácil. Começar por onde o nosso trabalho de registro? O que temos a acrescentar ao que já está registrado? A resposta a essa pergunta talvez seja que o que temos a acrescentar ao que está registrado seja exatamente aquilo que ainda ninguém registrou, nem pode vir a registrar, melhor do que nós mesmos, ou seja, aquilo que não está acessível a ninguém mais que nós mesmos. Enfim, há fatos e fatos. Há os fatos que são acessíveis a todos, e há os fatos exclusivos de cada um de nós, os nossos fatos mentais. Talvez não precisemos registrar os fatos do mundo real, porque há muito esforço no mundo voltado para esse fim, mas esforço algum no mundo será capaz de registrar o que se passa dentro de nossas mentes, a não ser nós mesmos se nos dispusermos a isso, obviamente.

Mas qual a razão para isso? O que temos nós em particular a oferecer de original ao mundo? Qual a informação que deve vir à tona de nossas mentes para o conhecimento do mundo?

Se pudéssemos dividir o conteúdo de tudo aquilo que encontra-se registrado em nossas mentes, teríamos duas categorias de informação: a primeira seria composta de nossa história pessoal e a segunda, de nossas idéias acerca do mundo. Ninguém pode ser capaz de conhecer nossa história pessoal melhor que nós, e ninguém pode saber o resultado de nossos raciocínios, a menos que nos disponhamos a revelá-los ao mundo. Mas, mais uma vez, qual o valor dessas informações?

Não sabemos. A humanidade pode ter tido milhares de grandes homens, grandes pensadores, que viveram e morreram e foram esquecidos pelo simples fato de não haver registros disponíveis sobre eles. Mas não é só a qualidade de nossos raciocínios que conta. A nossa história pessoal é única assim como nós somos únicos, e temos nosso valor próprio pela nossa singularidade. O simples fato de termos existido e termos vivido por si só já é um bem inestimável. Não que aqueles que viveram e não deixaram registros não tenham tido vidas valiosas, mas é que é da natureza humana querer compartilhar experiências, sejam elas quais forem. Nossas biografias podem não ser das mais empolgantes, mas ainda assim, são valiosas e naturalmente que merecem ser compartilhadas com o restante da humanidade.

Por onde começaríamos nossas biografias?

De quantas maneiras o passado pode ser descrito? Veremos a nós mesmos em nosso passado sob o foco de qual lente? Quantas lentes temos? São questões difíceis de serem respondidas. Entretanto, temos de responde-las. A qualidade de nossos registros depende da maneira como olhamos para nosso passado. Temos alguma base para começarmos algo dessa complexidade? Quais a ferramentas disponíveis para a tarefa? A História, como ciência, talvez seja a resposta.